Você pode passar a sua vida, cumprir sua missão e ser feliz sem Avicena. Mas para entender da natureza do homem terá que percorrer as cerca de 300 páginas do “Livro da alma“.

SOBRE O AUTOR
Ibn Sina (980-1037 d.C.), ou Avicena como é mais conhecido, nasceu em uma região da rota da seda que fez parte da Pérsia, depois da União Soviética e hoje é a república democrática do Uzbequistão. Teve excelente educação. Gostava de poesia. Aos 10 anos memorizou todo Alcorão. Aos 16 já atendia como médico.

Os árabes nessa época tinham sede de conhecimento e empenhavam esforços em traduzir e juntar tudo o que existia do mundo grego, egípcio e oriental. Conta a história que aos 18 anos, o jovem Avicena foi chamado para curar o príncipe Nuh Ibn Mansur e ao curá-lo teve acesso à sua biblioteca com as grandes obras de medicina, filosofia e política. O contato de Avicena com obras de Aristóteles, Plotino e Al-Farabi mudou a história do ocidente. Do ocidente? Sim, explico abaixo.

Logo após a morte de Avicena, no ano de 1152, o “Livro da Alma” foi traduzido do árabe para o latim se tornando acessível a um grupo restrito de teólogos cristãos. Nessa época os livros eram copiados à mão, a prensa só fora criada 300 anos mais tarde. Eram poucas as cópias do “Livro da Alma“. Apesar da restrição de unidades disponíveis, e do público restrito, o Livro da Alma foi um marco influenciando todos que vieram depois tanto no mundo judeu-cristão quanto no próprio mundo islâmico. Avicena influenciou o grande teólogo católico Tomás de Aquino (1225 – 1274 d.C.), o teólogo inglês Roger Bacon (1214-1294). Influenciou mais gente do que se pode imaginar. Para se ter uma ideia, foi através das publicações de Avicena que o Ocidente conheceu Aristóteles. Achou pouco? Que tal saber que sua obra “Qanun fi Al-Tib” (O Canon de Medicina) foi usada como livro base em universidades da Europa latina por 400 anos! Alguns dirão que a psicologia como conhecemos hoje nasce com Avicena.

Avicena escreveu 276 livros. Sua principal obra foi a enciclopédia “Al-Shifā” (A Cura), de vários volumes. O livro que comento nesse post é o sexto volume, intitulado “Livro da Alma“.

O Livro da Alma completará mil anos de idade mas como diz o tradutor, nem sempre o antigo significa ultrapassado. Muitas vezes o antigo significa a raiz que nos apoia e foi exatamente isso que senti em minha leitura e quero contar para vocês.

ORIGINALIDADE
Nem tudo é original no Livro da Alma. Avicena já pegou o bonde andando. Na filosofia, ele parte de Aristóteles (384-322 a.C.) e Al-Farabi (870-950 d.C.). Os conhecimentos de medicina ele toma de várias culturas. E o sentido ético aprende com o profeta Maomé(571-632 d.C).

Dois aspectos destacam o Livro da Alma. O primeiro aspecto de destaque é a união de medicina, filosofia e espiritualidade. Essa é uma característica dos filósofos árabes onde o conhecimento de medicina deveria estar em concordância com a filosofia. O segundo destaque está para as contribuições próprias de Avicena. Cito algumas: A relação corpo-mente já tinha sido citada por outros autores mas aqui em Avicena ela é esmiuçada. Avicena relaciona faculdades da alma aos órgãos do corpo físico. Ou por exemplo, explicará ele em qual parte da alma acontece as influências que inspiram os profetas. E mais, as funções da mente já tinham sido descritas, mas Avicena consegue pela primeira vez relacioná-las. Avicena chega a identificar as regiões físicas do cérebro com as faculdades mentais.

MINHA EXPERIÊNCIA
Avicena influenciou e foi influenciado. Cada leitor identificará essas influências em seu próprio universo.

Foi influenciado pelas escolas antigas. No meu caso, percebi que seu conteúdo está em sintonia com ensinamentos do Yoga e de Samkhya.

Avicena influenciou quem veio depois. Novamente, no meu caso, as proposições de Avicena sobre alma dos vegetais e alma dos animais me remeteram ao pensamento de Goethe. Avicena fala das forças de atração e repulsão. Fala da realização do homem em sua individualidade e do animal como espécie. Para mim era impossível não lembrar de Steiner. Avicena apresenta uma hierarquia de intelectos que reflete a trajetória para a realização espiritual (união com a inteligência primeira) tão comum na Teosofia e Nova-Era. Está ali também a base teórica que sustenta o Mundo Imaginal de Ibn Arabi o qual já comentamos aqui no Medite Comigo.

Em outros momentos tive a impressão que o que surgiu mais tarde não foi por sua influência. Então por exemplo, Avicena afirma que primeiro surge a função e depois o órgão físico. Isso é exatamente a mesma afirmação do Dr. Andrew Taylor Still fundador da Osteopatia nos EUA. O Dr. Still não se baseou em Avicena. É que Avicena realmente estava além do seu tempo.

Ler Avicena para mim foi como encontrar raízes que permitiram ao homem dar passos significativos no conhecimento de si próprio, de sua natureza.

SOBRE O TRADUTOR
Esse clássico antes disponível apenas para os teólogos cristãos medievais em latim está aí acessível ao público em português graças à Miguel Attie Filho. Miguel tem mestrado e doutorado em filosofia e história do pensamento. Traduziu do árabe direto para o português. Foi um trabalho meticuloso de escolha das palavras mais adequadas ao nosso português. Não o conheço mas fica aqui meu agradecimento pelo seu trabalho.

CONTEÚDO
O livro não é místico nem religioso. Avicena ultrapassou esses rótulos. Posso dizer que é científico dentro do que a época permitia. Não fala de energias ou corpos sutis. Avicena fala em “faculdades da alma”. Fiz um resumo dessas faculdades e dos pontos que achei mais relevantes. Deixo disponível gratuitamente em PDF mais abaixo nessa página ou clicando diretamente aqui. Espero que sirva de apoio aos que vão ler o livro pois não é uma leitura fluida.

O livro fala da conexão entre alma e corpo, sobre como se dão as profecias, sobre o sonho autêntico e o enganoso, sobre vigília, memória, as paixões. Mas só fica interessante a partir do 4⁰ capítulo. Até lá é enfadonho, falando de coisas que para o homem moderno não haverá qualquer novidade.

Preciso mencionar que o capítulo sobre o não corrompimento da alma é um campo fértil para desenvolvimento de ideias. É uma preciosidade.

PONTOS NEGATIVOS

• O vocabulário utilizado é simples e não utiliza termos complexos tão comuns na filosofia moderna. Mas isso não é o suficiente para tornar a leitura agradável. Temos que sentar com a intenção de estudar Avicena. Requer muita paciência.
• Avicena não utiliza um padrão de nomenclatura. Hora utiliza determinados termos, hora utiliza termos diferentes. O tradutor faz um belo trabalho ao desembaralhar esse jogo de nomes. Mesmo assim, apesar de seu esforço, a coisa é enrolada e exige atenção.
• A tentativa de Avicena em provar a existência da alma, sinceramente, não convence. Essa, ao meu ver só através da experiência de uma projeção astral estimulada ou através de EQM.

RECOMENDAÇÃO
O livro é desnecessário para a maior parte daqueles que estão num caminho espiritual. Mas segundo o próprio Avicena o caminho espiritual para se alcançar a realização é exatamente a hierarquia de intelectos que ele nos apresenta e você vai passar por ela uma hora ou outra. O “Livro da Alma” é um roteiro da evolução pessoal.

Como disse no início, você pode ser feliz sem Avicena. Contudo, se quer entender os mecanismos da alma, este livro é um marco absoluto.